terça-feira, 10 de maio de 2011

FALA,MESTRE!

recitações, cópias e produções que imitavam o estilo
de autores antigos, como as famosas cartas da
escritora Madame de Sévigné (1626-1696) e as
fábulas de La Fontaine (1621-1695).
Quando a leitura se tornou popular?
CHARTIER No século 19, surgiu um novo contingente
de leitores: crianças,mulheres e trabalhadores.
Para esses novos públicos, os editores lançaram livros
escolares, revistas e jornais. Porém, desde o século
16, existiam livros populares na Europa: a literatura
de cordel na Espanha e em Portugal, os chapbooks
(pequenos livros comercializados por vendedores
ambulantes) na Inglaterra e a Biblioteca Azul
(acervo que circulava em regiões remotas) na França.
Por outro lado, certos leitores mais alfabetizados que
os demais se apropriaram dos textos lidos pelas elites.
O livro O Queijo e os Vermes, do italiano Carlo
Guinzburg, publicado em 1980, relata as leituras de
um moleiro do século 16.
As práticas atuais de leitura têm relação
com as práticas do passado?
CHARTIER É claro. Na Renascença, por exemplo,
a leitura e a escrita eram acessíveis a poucas pessoas,
que utilizavam uma técnica conhecida como loci
comunes, ou lugares-comuns, ou seja, exemplos
a serem seguidos e imitados. O leitor assinalava
nos textos trechos para copiar, fazia marcações
nas margens dos livros e anotações num caderno
para usar essas citações nas próprias produções.
No século 16, editores publicaram compilações de
lugares-comuns para facilitar a tarefa dos leitores,
como fez o filósofo Erasmo de Roterdã (1466-1536).
Em que medida compreender essas e outras
práticas sociais de leitura pode transformar
a relação com os textos escritos?
CHARTIER Os estudos da história da leitura
costumam esquecer dois importantes elementos: o
suporte material dos textos e as variadas formas de
FALA,MESTRE!
ler. Eles são decisivos para a construção de sentido
e interpretação da leitura em qualquer época.
Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes
(1547-1616), era lido em silêncio, como hoje, mas
também em voz alta, capítulo por capítulo, para
platéias de ouvintes. Todas as pesquisas nessa área
formam um patrimônio comum com o qual os
professores podem construir estratégias pedagógicas,
considerando as práticas de leitura.
Que papel a literatura ocupa
na Educação atual?
CHARTIER A escola se afastou da literatura,
principalmente no Brasil, porque está preocupada
em oferecer ao maior número possível de crianças
as habilidades básicas de leitura e escrita.
Mas acredito que os professores devem acolher
a literatura novamente, da alfabetização aos cursos
de nível superior, como mostram várias experiências
pedagógicas. Na França, por exemplo, um filme
recém-lançado exibe uma peça do dramaturgo
Pierre de Marivaux (1688-1763) encenada por
jovens moradores de bairros pobres.
Muitos dizem que desenvolver o gosto
dos jovens pela leitura é um desafio.
CHARTIER Certamente.Mas é papel da escola
incentivar a relação dos alunos com um patrimônio
cultural cujos textos servem de base para pensar a
relação consigo mesmo, com os outros e o mundo.
É preciso tirar proveito das novas possibilidades do
mundo eletrônico e ao mesmo tempo entender a
lógica de outro tipo de produção escrita que traz
ao leitor instrumentos para pensar e viver melhor.
O senhor quer dizer que a internet pode
ajudar os jovens a conhecer a riqueza
do mundo literário?
CHARTIER Sim. O essencial da leitura hoje passa
pela tela do computador.Mas muita gente
diz que o livro acabou, que ninguém mais lê,
que o texto está ameaçado. Eu não concordo.
O que há nas telas dos computadores? Texto –
e também imagens e jogos. A questão é que
a leitura atualmente se dá de forma, fragmentada,
num mundo em que cada texto é pensado como
uma unidade separada de informação. Essa forma
de leitura se reflete na relação com as obras, já que o
livro impresso dá ao leitor a percepção de totalidade,
coerência e identidade – o que não ocorre na tela.
É muito difícil manter um contato profundo com
um romance de Machado de Assis no computador.
CURIOSIDADE
HISTÓRICA
Chartier e o
historiador italiano
Guglielmo Cavallo
relatam no livro A
História da Leitura
no Ocidente, vol. 2,
uma aula de
formação de
professores na
França em pleno
século 19. No lugar
do quadro negro,
os aprendizes
escreviam com
o dedo em
uma bandeja
contendo areia.
“É difícil manter um
contato profundo com
um romance de Machado
de Assis na tela do
computador”
O senhor acha que o e-paper (dispositivo
eletrônico flexível como uma folha de papel)
é o futuro do livro?
CHARTIER Os textos eletrônicos são abertos,
maleáveis, gratuitos e esses aspectos são contrários
aos da publicação tradicional de um texto (que
pressupõe a criação de um objeto de negócio).
Para ser publicado, um texto deve ser estável.
Na internet, os textos eletrônicos continuaram
protegidos, ou seja, não podem ser alterados, e têm
de ser comprados e descarregados no computador
do usuário integralmente. Para mim, a discussão
sobre o futuro dos livros passa pela oposição entre
comunicação eletrônica e publicação eletrônica,
entre maleabilidade e gratuidade.
Ao longo da história da humanidade,
acompanhamos a passagem da leitura oral
para a silenciosa, a expansão dos livros e
dos jornais e a transmissão eletrônica de
textos. Qual foi a mais radical?
CHARTIER Sem dúvida, a transmissão eletrônica.
E por uma razão bastante simples: nunca houve uma
transformação tão radical na técnica de produção
e reprodução de textos e no suporte deles. O livro
já existia antes de Guttenberg criar os tipos móveis,
mas as práticas de leitura começaram lentamente
a se modificar com a possibilidade de imprimir
os volumes em larga escala. Hoje temos no mundo
digital um novo suporte, a tela do computador, e
uma nova prática de leitura,muito mais rápida e
fragmentada. Ela abre um mundo de possibilidades,
mas também muitos desafios para quem gosta de ler
e sobretudo para os professores, que precisam
desenvolver em seus alunos o prazer da leitura.
É muito fácil publicar informações falsas
na internet. Como evitar isso?
CHARTIER A leitura do texto eletrônico priva o leitor
dos critérios de julgamento que existem no mundo
impresso. Uma informação histórica publicada num
livro de uma editora respeitada tem mais chance
de estar correta do que uma que saiu numa revista
ou num site. É claro que há erros nos livros e ótimos
artigos em revistas e sites.Mas há um sistema de
referências que hierarquiza as possibilidades de
acerto no mundo impresso e que não existe no
mundo digital. Isso permite que haja tantos plágios
e informações falsas. Precisamos fornecer
instrumentos críticos para controlar e corrigir
informações na internet, evitando que a máquina
seja um veículo de falsificação.
FALA,MESTRE!
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obra A Aventura do
Livro, de Roger
Chartier, em
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Livro, Roger
Chartier, 160 págs.,
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Ocidental, vol. 2,
Roger Chartier e
Guglielmo Cavallo,
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35,50 reais
Inscrever &
Apagar, Roger
Chartier, 336 págs.,
Ed. Unesp, 35 reais
O Queijo e os
Vermes, Carlo
Ginzburg, 256 pág.,
Ed. Cia. das Letras,
tel. 0800-014-2829,
19,50 reais
Práticas da
Leitura, Roger
Chartier, 268 págs.,
Ed. Estação
Liberdade, tel. (11)
3661-2881, 42 reais
“Um romance se lê de
forma reflexiva. E isso é
muito diferente de pular de
uma informação a outra,
como fazemos num site”
Essa fragmentação dos conteúdos na
internet não afeta negativamente a formação
de novos leitores?
CHARTIER Provavelmente sim. Na internet, não
há nada que obrigue o leitor a ler uma obra inteira
e a compreender em sua totalidade.Mas cabe às
escolas, bibliotecas e meios de comunicação mostrar
que há outras formas de leitura que não estão na tela
dos computadores. O professor deve ensinar que um
romance é uma obra que se lê lentamente, de forma
reflexiva. E que isso é muito diferente de pular de
uma informação a outra, como fazemos ao ler
notícias ou um site. Por tudo isso, não tenho dúvida
de que a cultura impressa continuará existindo.
As novas tecnologias não comprometem
o entendimento e o sentido completo
de uma obra literária?
CHARTIER Sim e não. A pergunta que devemos
nos fazer é: o que é um texto? O que é um livro?
A tecnologia reforça a possibilidade de acesso
ao texto literário, mas também faz com que seja difícil
apreender sua totalidade, seu sentido completo.
É a mesma superfície (uma tela) que exibe todos
os tipos de texto no mundo eletrônico. É função
da escola e dos meios de comunicação manter
o conceito do que é uma criação intelectual
e valorizar os dois modos de leitura, o digital e o
papel. É essencial fazer essa ponte nos dias de hoje.
O novo suporte tecnológico pode auxiliar
a leitura, mas não necessariamente
o desempenho escolar.
CHARTIER Pesquisas realizadas em vários países
mostram que o uso do computador na Educação,
quando acompanhado de métodos pedagógicos,
melhora, sim, o aprendizado, acelera a alfabetização
e permite o domínio das regras da língua, como a
ortografia e a sintaxe. É preciso desenvolver políticas
públicas que tenham por objetivo a correta utilização
da tecnologia na sala de aula.

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